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18/04/2021 Emerson Sbardelotti Edição 3935 Um amado amante da cultura!   Homenagem a Gilmar de Carvalho
F/ Memorial Patativa do Assaré
"Sigo mantendo a teimosa esperança acesa; construindo um lindo mosaico com a lembrança das pessoas que se foram sem termos nos despedido. Nunca antes, em minha história de vida, senti tanto a falta dos olhares, dos sorrisos, dos beijos e dos abraços."

 

Homenagem a Gilmar de Carvalho

Vivemos numa pandemia que tem feito inúmeras vítimas por todo o Brasil; somos o centro mundial da disseminação da COVID-19; desde que a peste se espalhou, perdi várias amigas e amigos... quando chegou em 50 amigas e amigos que foram plantados no chão; parei de contar, pois os olhos não aguentavam mais chorar, o coração e alma já estavam dilacerados demais, continuam ainda.

Sigo mantendo a teimosa esperança acesa; construindo um lindo mosaico com a lembrança das pessoas que se foram sem termos nos despedido. Nunca antes, em minha história de vida, senti tanto a falta dos olhares, dos sorrisos, dos beijos e dos abraços. Me sinto como pássaro na gaiola, tendo que cantar para desendoidecer!

Desta pandemia teremos apenas uma constatação: quem era bom de verdade, melhorou ainda mais; quem era ruim, a cada dia perde completamente a própria humanidade, tornando-se um monstro, sem escrúpulos, sem empatia, sem sentimentos. Saberemos quem estão do lado da defesa da vida e quem está ao lado da morte.

Plantou sementes de amor

Gilmar de Carvalho foi um desses seres humanos que só souberam defender a vida e plantou sementes de amor pelos caminhos que cruzou, pelas amizades que fez, voou livre, apontou itinerários da liberdade e da libertação. Não tive a honra de conhece-lo pessoalmente, mas conversei demoradamente, umas três vezes por telefone e trocamos muitos e-mails, sempre deixei clara a minha vontade de conhece-lo, para ouvir suas histórias de vida. Gilmar me enviou todos os livros do Poeta ou referentes a Patativa do Assaré, biografias do Poeta por outros autores. Tudo isso com uma tremenda generosidade. Nunca me pediu nada em troca. Um tesouro que guardo com muito carinho, e que foram os livros-fonte da minha dissertação no Mestrado em Teologia na PUC-SP sobre Patativa do Assaré.

Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho (Sobral, 20/08/1949 - Fortaleza, 17/04/2021), foi jornalista, professor e pesquisador da cultura cearense, tinha 71 anos de idade e morreu neste sábado, vítima da COVID-19. No dia 20 de março havia sido internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital particular, em Fortaleza. Em agosto próximo, completaria 72 anos de idade.

Gilmar de Carvalho fez o bacharelado em Direito e em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e o Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi professor do Departamento de Comunicação Social e integrante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. Foi escritor de inúmeras obras sobre Cultura, Cultura Popular. Foi biógrafo e amigo do Poeta Patativa do Assaré, tendo publicado várias obras sobre o Poeta, que tinha um carinho imenso por ele.

Em 2019, recusou receber o título de Doutor Honoris Causa da UFC, devido à nomeação de Cândido Albuquerque como reitor da instituição. Para Carvalho, Cândido seria um “interventor” e sua nomeação teria ignorado a consulta à comunidade acadêmica. Sempre foi fiel aos princípios democráticos e a ética.

Neste ano, Gilmar lançaria mais um livro: “Poéticas da voz - Aboios, benditos, cantoria, cordel, emboladas, loas, saraus, torém, trovas”.

Tive a honra de ter um Posfácio assinado por Gilmar de Carvalho no meu livro Teologias & Literaturas 7 – A Opção pelos Pobres na Poesia de Patativa do Assaré, da Fonte Editorial, 2018, p. 213-215, que reproduzo na íntegra, para mostrar um pouco da bondade, da gentileza, da amizade que ele demonstrou por mim:

 

 

 

 

 

 

 

 

A voz poética e a consciência social: Quando Patativa do Assaré encontra Emerson Sbardelotti

Curioso como as ideias circulam e não existem fronteiras para o conhecimento. Um ponto de partida pode estar a milhares de quilômetros de distância de onde são articuladas teorias, operacionalizados conceitos, estabelecidos nexos, desenvolvidas argumentações e tudo pode desaguar na tessitura de um novo texto.

Foi assim que Patativa do Assaré, – o poeta cearense Antonio Gonçalves da Silva (1909/2002), – fez eclodir, inspirou e pontuou, ao longo do tempo, os estudos do capixaba Emerson Sbardelotti, no Mestrado em Teologia, da PUC de São Paulo.

Emerson não conheceu Patativa, mas as palavras do bardo, ditas no contexto de uma tradição oral, e deitadas na escrita (como diria Paul Zumthor), em nove livros que publicou, organizou ou dos quais fez parte, ecoaram e mostraram a importância deste cordel, que incluía, com vigor e coerência, uma visão social, pouco aprofundada nas narrativas da tradição popular, acusada, com frequência de ser conformista.

O jovem pesquisador juntou uma poética marcada pela excelência das ideias e seus reflexos no que se refere ao sagrado. Patativa escreveu sobre o que viveu. Foi um agricultor até a aposentadoria, aos setenta anos de idade, e fez versos, inicialmente para “distrair os serranos” (referia-se à Serra de Santana, onde nasceu, a 18 quilômetros de Assaré, a mais de 500 quilômetros de Fortaleza), e depois como exercício de uma cidadania construída com muita leitura, apesar da pouca educação formal, e da perda de um olho aos quatro anos de idade.

Além de muita leitura, Patativa passou a sentir as dificuldades e injustiças pelas quais passam os homens do campo, desde que seu pai morreu, quando ele tinha oito anos, e os filhos tiveram de partilhar os trabalhos na terra. O pai, um pequeno proprietário rural, não estava submetido, como boa parte dos sertanejos, a regimes feudais, onde os trabalhadores cultivavam as terras dos “coronéis”, em troca de migalhas.

O poeta pássaro cearense se livrou desta sina e, a partir daí, desenvolveu uma consciência social que lhe deu a aura de poeta e de profeta, ao reivindicar a Reforma Agrária, linhas de créditos e financiamento, assistência técnica e possibilidade de escoar a pequena produção que colhem. Patativa passou a ser porta-voz dos excluídos e fez isso por meio de uma poesia que vai além da militância, pela competência e pela genialidade.

Patativa seria o que o teórico italiano Antonio Gramsci chamou de “intelectual orgânico” e se fez no contato com a terra, por meio do trabalho, de dentro para fora, buscando interlocução com os que têm sensibilidade para ouvir e compreender o seu canto.

Sua produção poética nunca foi diletante. Fez poemas de gracejo, de amor, muitos antecipadamente ecológicos, outros que tratavam da relação da natureza com a cultura e os que denunciavam certos “avanços” técnicos como formas de desmanche das relações de sociabilidade no sertão, aí compreendidos os que falavam das mídias.

Emerson, preocupado com a fé e as questões do sagrado, não quis dissociar este viés, de uma “pegada” mais contemporânea, onde as questões das injustiças sociais prevalecessem e a palavra do Cristo encontrasse ressonância em um mundo egoísta, violento e consumista.

Estávamos diante de um material que justificaria uma dissertação competente, calcada em uma voz poética, com uma dicção que oscila entre o respeito à norma culta e a chamada poesia matuta, mais próxima das marcas da voz.

Patativa e Emerson têm em comum um respeito e uma reflexão, poética e acadêmica, que parte das raízes de um socialismo baseado nos princípios do cristianismo primitivo, onde tudo era partilhado, vertente que prevaleceu em movimentos messiânicos, como Canudos, Caldeirão, Pau de Colher. Este ideário se atualiza e tem seu momento culminante com a Teologia da Libertação, e com os desdobramentos que podem ser feitos desta vertente teológica na contemporaneidade.

O resultado desta dissertação mostra o respeito aos cânones da academia e uma liberdade e ousadia que só um poeta do porte de Patativa do Assaré poderia possibilitar.

Emerson encontrou o seu poeta, o seu nicho, e deste lugar construiu um enredo que fala as verdades que precisam ser ditas, e para isso recorreu à autoridade de um poeta monumento, que ele leu, pinçou, processou e editou, além de enredá-lo em uma trama que operacionaliza ideias dos seus teóricos e teólogos, com o objetivo de construir uma dissertação baseada no respeito, na coerência e na certeza de que a tradição foi semente de um projeto de futuro que tanto nos angustia.

Gilmar de Carvalho

 

Amado Gilmar de Carvalho

Que Deus o acolha em seus braços. Por aqui, seguimos na estrada poética e cultural defendendo a Vida!

A cultura brasileira, a cultura cearense deve muito a você, sua dedicação nos ensina que um povo sem cultura é um povo facilmente dominado, facilmente escravizado, facilmente dizimado. Está em nossas mãos agora defender a cultura e semear vários outros terrenos, como você fez. Sou fruto destas sementes que você jogou.

Tudo é Páscoa! Tudo é graça! Tudo é poesia! Tudo é cultura! Abreijos com Fraternura!

Emerson Sbardelotti - Simplex agricola ego sum in regnum vitae.

 

Foto de arquivo do Memorial Patativa do Assaré, enviada por Isabel Cristina (neta do Poeta) via WhatsApp: à esquerda, Gilmar de Carvalho; à direita, Patativa do Assaré.

*Emerson Sbardelotti é Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de Pastoral Leigo e Ministro da Palavra na Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Cobilândia, Vila Velha-ES.

 

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