Roteiros Pastorais Homilética
Compartilhe esta notícia:
12/02/2022 Marcelo Barros Edição 3945 Ser felizes mesmo no meio de tanta dor
F/ Pixabay
"Tem gente que vive parada sobre a própria imagem, fixada nos sintomas, paralisada pelas memórias pesadas, negativas ou pela saudade idealizada do que foi vivido e acabou. Por isso, a bem-aventurança consiste, de fato, na disposição de dar um passo à frente."

 

Neste VI Domingo comum (do ano C), o evangelho lido nas comunidades nos traz um texto básico para a nossa fé: Lucas 6, 17-26. Provavelmente os evangelhos colhem palavras que Jesus disse aqui e ali e as reuniram em uma unidade como se fosse um discurso. As perspectivas a partir das quais Mateus e Lucas contam as mesmas palavras de Jesus são diversas. Mateus conta a proclamação das bem-aventuranças como início do Sermão da montanha (Mt 5-7) que mostra Jesus como novo Moisés transmitindo a aliança de Deus para um Israel ampliado e aberto. Lucas toma só algumas partes do discurso e o situa em uma grande planície, como que visando a extensão do mundo inteiro. Resume as bem-aventuranças em quatro e acrescenta quatro lamentações que Mateus não tinha trazido.

Nos versículos 17 a 19, (texto que não entra na leitura litúrgica desse domingo), Lucas situa o contexto social. Diz que o cenário a partir do qual Jesus falou é o de um povo aberto que se reúne para escutar Jesus e ser curado. Frisa que as pessoas vêm tanto da região judaica, como do mundo grego-pagão, o que é exatamente a realidade das comunidades para as quais, nos anos 80, esse evangelho foi escrito. A ação terapêutica de Jesus une a palavra e o toque corporal. No entanto, Jesus propõe mais do que a cura de doenças: propõe um caminho novo de vida: o caminho das bem-aventuranças.

André Chouraqui, judeu cristão, que conhece bem a terra de Jesus e os costumes da época, traduz as bem-aventuranças por “em marcha”, ou “para frente!”. Na cultura em que Jesus viveu, a infelicidade é estar parado. Em hebraico, o termo para doença é mahala, que quer dizer andar em círculos, estar preso, fechado em seu sofrimento, em seus pensamentos ou até mesmo em suas emoções.  Tem gente que vive parada sobre a própria imagem, fixada nos sintomas, paralisada pelas memórias pesadas, negativas ou pela saudade idealizada do que foi vivido e acabou. Por isso, a bem-aventurança consiste, de fato, na disposição de dar um passo à frente.

Uma boa definição da espiritualidade é dar um passo a mais do lugar onde se está. (...) No seu livro sobre as bem-aventuranças, Jean-Yves Leloup insiste: “as bem-aventuranças são, cada uma, um convite para nos recolocar em marcha, a partir de nossas lágrimas, a partir do caminho que já percorremos. Há ainda muito a caminhar” (Vozes, 2004, pp. 57- 58).  

Pôr-se em marcha

A comunidade de Lucas proclama “felizes” e convoca para se pôr em marcha, “a vocês”, pobres, famintos e pessoas que choram”. E o motivo pelo qual são abençoados ou felizes é que Deus não quer que haja injustiças e desigualdade no mundo. São bem-aventurados/as, porque, como daqui a pouco o reinado de Deus vem ao mundo, poderão deixar de ser pobres, famintos e aflitos. Ao colocar os verbos no presente, (“O reino é de vocês”), Jesus não fez apenas uma promessa para o futuro. De acordo com essas palavras, é possível ser feliz já, mesmo em meio à luta da vida.

Quando o evangelho de Lucas proclamou essas palavras de Jesus, as comunidades cristãs tinham sido testemunhas da guerra dos romanos contra os judeus. Tinham visto a destruição do templo e  viviam a repressão violenta do império, sob o imperador Domiciano. De modo algum, a perspectiva social e política permitia a proclamação de qualquer saída esperançosa. Nesse contexto, o anúncio das bem-aventuranças para as pessoas pobres e sofredoras podia parecer uma loucura.

Qual a base histórica para afirmar que as pessoas vítimas da sociedade imperial poderiam ser consoladas e, de alguma forma, viver a alegria do reinado divino? Ainda em nossos dias, como crer que a proclamação das bem-aventuranças não é pura loucura de uma esperança impossível? O que significa proclamar bem-aventuranças para as pessoas que estão excluídas e são vítimas do Brasil de Bolsonaro? Concretamente, mudará alguma coisa? Não podemos acreditar que o projeto divino seja que as pessoas suportem injustiças e iniquidades para depois gozarem as delícias do céu. Esse tipo de interpretação da fé legitimou o Cristianismo colonial escravagista.

A perspectiva das bem-aventuranças de Jesus tem de ir no sentido oposto. Tem de ser o anúncio de que chegaram os tempos messiânicos e as pessoas deserdadas e marginalizadas pelo mundo são preferidas do reinado de Deus para mudar as condições do mundo. As pessoas pobres e excluídas não são bem-aventuradas por causa dos seus méritos e sim simplesmente porque Deus as ama e quis salvá-las.

Comunhão com os pobres contra a pobreza

Na América Latina, a Teologia da Libertação nos ensinou a viver a comunhão com os pobres, mas contra a pobreza injusta. Agora, a Ecoteologia nos ensina que para a sobrevivência da vida na terra, é preciso mudar totalmente esse sistema de consumo. Os índios nos ensinam o paradigma do bem-viver (colocar-se em comum uns com os outros e com a terra e priorizar o bem-comum).

Conforme Lucas, do mesmo modo que “parabeniza” aos pobres, famintos e sofredores, Jesus proclama quatro lamentações. Conforme o evangelho, ele estava na planície, com uma multidão de pobres que vieram para ser curados/as e libertados/as. Ali não estava ninguém rico. Mesmo assim, Jesus proclama essas lamentações: “Ai de vocês, ricos e todos os que estão muito bem na vida...”.  Certamente, Lucas se refere mais a pessoas e grupos da sua época do que diretamente a pessoas do tempo de Jesus. Nesse discurso, Jesus fala do presente e denuncia situações de injustiça. Ele reconhece: rebelar-se é justo, porque este mundo é absurdo. Sim, temos não só o direito, mas o dever sagrado de denunciar e de rogar praga contra um governo que é contra o direito dos pobres e contra um sistema que atenta contra a vida. Jesus faz isso ligando a situação atual com uma visão mística do futuro, aberta à esperança do reino, ou seja, a certeza de um mundo novo. Esse é o nosso caminho para juntos ser felizes.

Leia também:
Metaverso e a vida Eclesial
Dia dos Enfermos: Cuidado humano integral

O assassinato de Moïse e os refugiados no Brasil

Templos, Igrejas e protestos, é preciso refletir

O Espírito continua a transbordar desde a Amazônia

Norteamento mais lúdico para dinâmicas do seminário

Igreja dos Estados Unidos e os migrantes

Dia da vida consagrada: Chamados a ser Igreja sinodal

Santarém: 50 anos do Vaticano II da Amazônia

Dom Walmor: Cristianismo...

Superar o negacionismo climático

Francisco  e o combate às mudanças climáticas
Ouvir o irmão para ouvir a Deus - DMC 2022

CNBB visita o Papa Francisco
1. Superar o ambientalismo
2. Adotar uma nova Cosmologia
3. Uma nova visão do mundo
4. Uma nova visão de nós mesmos
5. Uma nova espiritualidade
Acesse este link para entrar nosso grupo do WhatsApp: Revista O Lutador Você receberá as novas postagens da Revista O Lutador em primeira mão

 

Compartilhe esta notícia:
Nome:
E-mail:
E-mail do amigo:
DEIXE UM COMENTÁRIO
TAGS
ÚLTIMAS NOTÍCIAS