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28/05/2020 Paul Evdokimov Edição 3924 Se alguém me quer seguir...
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"No momento da pesada solidão, somente a humildade profunda vem em nossa ajuda."

Paul Evdokimov

 Salvo raras exceções, a vida espiritual nasce de um acontecimento que chamamos de “conversão”. Pouco importa o seu conteúdo exato, ela é uma ocasião sugestiva, um choque seguido da passagem clara de um estado a outro. Como uma luz reveladora das sombras, ela desvela num golpe a insuficiência do presente inconsistente e orienta para as portas abertas de um mundo novo.

Esta isca de uma promessa inteiramente virginal leva a mudanças decisivas e envolve o alegre comprometimento de todo o nosso ser. Mesmo aqueles que herdam a fé desde sua infância passam, cedo ou tarde, por sua descoberta consciente, por uma apropriação inteiramente pessoal e sempre perturbadora.

Uma leitura, um encontro, uma reflexão fazem brotar uma brusca e grande iluminação. À sua claridade, tudo se ordena como em um poema genial, dando a cada coisa um valor virginal inestimável. É a primavera religiosa de uma tonalidade alegre, mozartiana; como os brotos cheios de seiva, o ser humano se sente dilatado por uma surpreendente alegria, uma simpatia espontânea por tudo e por todos. Um tempo inesquecível: como uma festa iluminada por mil claridades, ele leva a ver em Deus o rosto sorridente do Pai que sai ao encontro de seu filho.

Este tempo é de curta duração. A face do Pai assume a figura do Filho, e sua cruz nos cobre por dentro. Nossa própria cruz se perfila nitidamente e já não há mais retorno possível à fé simples e infantil de outrora. As dissonâncias dolorosas rasgam a alma em sua clarividente visão do mal e do pecado: é a tensão extrema entre dois estados que se excluem mutuamente. A experiência brutal das quedas e das impotências pode lançar à borda do desespero.

É grande a tentação de clamar por injustiça, de dizer que Deus nos pede demais, que nossa cruz é mais pesada que a dos outros. Uma velha história conta semelhante revolta de um homem simples e sincero. Então, o anjo o conduz até um amontoado de cruzes de diferentes tamanhos e lhe propõe escolher uma delas. O homem encontra a mais leve, mas logo percebe que era justamente a sua! O homem jamais é tentado além de suas forças.

Deus nos faz tocaia aguardando esse momento decisivo. Ele espera de nossa fé um ato viril, a plena e consciente aceitação de nosso destino; pede que o assumamos livremente. Ninguém pode fazê-lo em nosso lugar, nem mesmo Deus. A cruz é feita de nossas fraquezas e nossas falhas; ela é construída por nossos impulsos sufocados, e sobretudo nossas trevas profundas, onde remói a surda resistência e apodrece a torpeza inconfessável e cúmplice. Em suma, ela tem o peso de toda a complexidade eu é, nesse momento, o eu autêntico.

Ora, o “ama a teu próximo como a ti mesmo” (Mt 19,19) comporta certo amor por si mesmo: é o chamado a amar nossa cruz. Talvez signifique o ato mais difícil: aceitar-se como se é. Sabemos que os seres mais orgulhosos, os mais sedentos de amor próprio são exatamente aqueles que se sentem mal consigo mesmos, os que se odeiam secretamente. Esse momento infinitamente grave do encontro consigo mesmo exige um desnudamento, a visão imediata e total de si mesmo em suas dobras mais secretas...

No momento da pesada solidão, somente a humildade profunda vem em nossa ajuda. Reconhecendo a radical impotência do humano, ela inclina o homem a depositar seu ser inteiro ao pé da cruz e, então, bruscamente, Cristo carrega em nosso lugar o peso esmagador: “Aprendei de mim que meu jugo é suave, e meu fardo é leve”. (Mt 11,30.)

 

PAUL EVDOKIMOV [1901-1970] nasceu em São Petersburgo, Rússia. Estudava teologia quando estourou a revolução comunista de 1917. Exilado em Paris, doutor em filosofia e teologia, destacou-se como professor do Instituto São Sérgio. É um exemplo de fiel leigo a serviço da fé, dedicando-se a divulgar no Ocidente a tradição cristã oriental. Adepto do ecumenismo, foi convidado como observador do Concílio Vaticano II. Entre suas obras, destacam-se: The art of the icon, Teologia da Beleza, Ortodoxia, L’Amour fou de Dieu.

 

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