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30/03/2020 Maria   Edição 3922 Retalho na parede  
F/ MGF
"Cada canto ressuscitava lembranças perdidas, rostos antigos, vozes distantes."

 

Há poucos dias estive por lá. A casa antiga recebeu-me como antigamente.

Vazia, triste, mas era a mesma casa de meu tempo-menino. Meus netos não entendiam aquela vontade estranha da avó...

- Preciso entrar lá, gente!

A contragosto, acompanharam-me ao que eles chamavam de falta de gosto, falta de ideia...

Um cheiro de mofo enchia os cômodos, e as janelas estavam emperradas e secas, resistentes àquela visita inesperada...

Uns poucos móveis continuavam no mesmo lugar e até uma velha cortina dançou alegre ao sopro do vento que há muito não recebia.

Cada canto ressuscitava lembranças perdidas, rostos antigos, vozes distantes.

Cada tábua do piso rangia a nossos passos, como se soluçasse de saudade da alegria da casa.

De repente, na sala de jantar, meu coração descobriu um espaço vazio, na pintura descolorida da parede trincada e cheia de descascados.

- Até as paredes ficam com a pele velha, enrugada - meu coração cochichou aos meus ouvidos...

Passei as mãos naquele retalho destacado na parede - era um carinho pelo tesouro que ele guardou enquanto moramos lá: a Folhinha do Coração de Jesus!

Ali era o seu lugar! A cada ano, papai tirava a velha folhinha enfumaçada, empoeirada, de tanto espiar o tempo, despetalado dia por dia no seu bloquinho, que ia ficando magrinho, magrinho, até sumir!

Nossa vida seguia as pétalas do calendário mágico: cada manhã era uma surpresa: charadas, santo do dia, receitas de quitandas, historinhas engraçadas, orações...

Havia a sua “concorrente”, a Folhinha Mariana, peça importante de toda casa. Papai a levava para a loja, porque os fregueses gostavam de consultar o tempo por ela. Crescemos cercados pelos dois calendários.

Como a loja ficasse longe de nossa casa, as consultas diárias eram feitas na casa vizinha. Lá, a Folhinha Mariana reinava absoluta na sala, conferindo um status social ao casal de velhinhos, D. Lica e Sô Joaquim Leitão.

As consultas iam-se modificando conforme nossa idade.

- Sô Joaquim, nós podemos olhar se vai ter feriado na semana que vem?

Ele adquiria um ar majestoso: o momento requeria certo ritual, certa cerimônia por ser responsável por informações importantes: limpava a garganta, tirava um pente do bolso e penteava seus cabelos grisalhos. Só então, nos atendia, com ar professoral...

Mais tarde, já adolescentes, nossas consultas eram outras:

- Dona Lica, será que vai chover quinta-feira?

Ela andava devagar, carregando, nos pés miúdos, as chinelinhas de lã, que pareciam dois coelhinhos rodando pela casa.

- Por que vocês precisam saber se vai chover?

Seus olhinhos brilhavam de felicidade, porque, até que enfim, saberia notícias alegres de gente moça para enfeitar a monotonia der seus dias - os dois viviam sozinhos, já que não tinham filhos. E Estrela do Indaiá oferecia pouquíssimas novidades para seu povo.

- É porque vai ter barraquinha depois da novena...

- Queremos engomar nossas anáguas e... se chover, elas não secam a tempo...

  1. Lica, por puro prazer, alongava a prosa, dava receitas de goma para as anáguas, pedia detalhes sobre os leilões das prendas, uma santinha a D. Lica.

O retalho na parede teve o sortilégio de trazer de volta nossa meninice, nossos vizinhos, nossos desejos tão inocentes.

Estava, como sonâmbula, tentando prender, entre as mãos, a minha infância, com seus encantamentos.

De repente... fiquei de novo, fiquei velha, ouvindo a voz dos netos que me apressavam:

- Chega, , já viu tudo, vamos embora...

Pronto, estava de olhos abertos, percorrendo a casa antiga... Aquele tempo encantado, de quermesses, de anáguas, aqueles vizinhos ficaram lá na curva das lembranças mais bonitas que guardo em meu coração...

Saí profundamente emocionada, deixando um olhar em cada cantinho querido. Antes de sair, fechei os olhos quadrados da casa, pintados de azul desbotado, beijei cada parede, chorei pelas saudades que deixei lá dentro: papai, mamãe, irmãos, Ana da mamãe.

Já estava com a chave na mão para fechar a porta, quando me lembrei do presente que trouxera para a velha e querida casa: fui ao carro e, triunfante, entrei de novo no santuário de lembranças cristalizadas em nossa vida.

Os netos me acompanharam, querendo saber a causa de minha volta.

Parei em frente ao retalho da parede e, depois de muitos anos, a Folhinha do Coração de Jesus ocupou de novo o seu lugar.

Agora, a folhinha está lá, velando pela velha-casa-velha.

Tenho certeza, ela continuará guardando nossas falas infantis. Ela vai continuar guardando um bando de meninos, um pai que chegava da loja como se fosse um sol... Ela guardará minha bela mãe, que costurava numa Singer que sabia cantar...

Dentro daquela casa, deixei sonhos, deixei minha vida. Fechamos os velhos olhos da casa. Para mim, foi como se fechasse a porta do mundo.

Silenciosamente, entramos no carro para a volta...

 

 

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