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04/06/2019 Antônio Carlos Santini Edição 3912 O mistério da amizade
Foto: Josh van Berkel
"Existe um traço comum a todas essas amizades..."

 

Antônio Carlos Santini

 

Existe um mistério na amizade. Como explicar esta espécie de identidade entre duas pessoas que, uma vez estabelecida, resiste ao tempo e à distância?

Alguém me diz que a amizade brota da admiração. “Tua me virtus tibi fecit amicum.” Ao perceber a qualidade do outro, sinto-me atraído em sua direção. Pode ser verdade, pois não existe amizade entre bandidos, meros comparsas, quando a ausência de virtude impede essa atração.

Outros traduzem a amizade por uma espécie de similitude entre as pessoas, um idêntico sentir da vida, o sinfronismo semelhante àquele que ocorre quando lemos um poema e nos identificamos com o poeta. Chegamos a pensar: eu gostaria de ter escrito esta página!

No fundo, amigo vem de amar. É a mesma raiz. O amigo nasce da necessidade do outro, da extrema pobreza do próprio eu que, na solidão, anseia pela ponte e pelo contato. E são muitas as tentativas falhas de fazer amigos. Na hora difícil, muitos se ausentam. “Amicus certus in re incerta cernitur.”

Pessoalmente, fui premiado pela vida. Ao completar 75 anos e iniciar a quarta e última etapa da existência, revisito o tempo passado e me sinto agraciado pelos amigos que caminharam a meu lado. Algumas amizades nasceram do trabalho em equipe, seja no campo profissional, seja na missão evangelizadora, seja no mundo musical. Outras brotaram do sofrimento comum, quando as mãos se unem diante da mesma ameaça. Outras caíram do céu com um relâmpago em céu azul, sem que nada de racional possa explicá-las.

Um grande amigo foi Waldyr Amaral Bedê, que eu sempre defini como um homem “cordial”. Perseguido, preso político, jamais alimentou ressentimentos. Deixou saudades em Volta Redonda como inigualável professor de História e Sociologia. Pensamento fulgurante, notável habilidade verbal, deixava os alunos em suspenso durante sua exposição. Era permanente a sua disposição em ajudar as pessoas. Algumas vezes, escrevemos artigos a quatro mãos. Já disse adeus...

Outro amigo inesquecível foi Eugenio Tommasi. Italiano, também ele dedicado à educação, pouca gente sabia que era padre e, nas turbulências do pós-Concílio, deixara o ministério. Quando a família Tommasi emigrou das terras de Pordenone, os fazendeiros de Pirajuí alojaram os italianos em antigas pocilgas. Desde a infância, a vida de Eugenio foi uma luta contínua contra as adversidades. Eu o vi pároco, professor, diretor de escola e gerente de recursos humanos. De volta à Itália, deixou comigo sua biblioteca, mas suas cartas chegavam com frequência. Inesperadamente, após alguns anos, regressou ao Brasil e tornou-se agente de pastoral no norte de Minas, promovendo a Pastoral da Criança entre famílias miseráveis. Um câncer o levou...

A lista seria grande. Lázaro Sernizon, José Teixeira de Oliveira, François Haab, Pe. Pedro Cenoz, Tom de Minas e tantos outros que dividiram a estrada comigo, acreditando nos mesmos ideais. Nestes tempos tão ásperos, quando as casas estão cercadas de muros altos e cercas elétricas, a permanência da amizade acena um lenço de esperança que recorda ao coração humano a sua necessidade de amar.

Ao recordar tantos amigos e avaliar a herança que eles deixaram em minha vida, eu percebo que existe um traço comum a todas essas amizades: não mereço nenhum deles...

 

Foto: Josh van Berkel

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