Neste domingo que é o último do tempo litúrgico, a Igreja Católica nos convida a reafirmar que o fim da história é a realização do projeto divino no mundo. É o que os evangelhos chamam de “reino de Deus”. O evangelho lido neste domingo é João 18, 33 – 37.
É a famosa cena, de certa forma, presente nos quatro evangelhos segundo a qual o governador Pilatos interroga Jesus. Os religiosos do templo de Jerusalém tinham prendido Jesus e o tinham levado ao poder romano acusando-o de usurpar o título de César, o único imperador do mundo. O governador Pilatos quer saber se Jesus assume como verdadeira a acusação que os chefes judeus lhe fazem. Quer confirmar se Jesus assume mesmo o título de rei dos judeus, ou seja, de adversário político do imperador César.
Os quatro evangelhos relatam que Pilatos perguntou a Jesus se ele era o rei dos judeus. No entanto, só o quarto evangelho, escrito no final do século I, conta essa conversa narrada neste texto de hoje.
A resposta de Jesus a Pilatos tem duas partes: na primeira, ele responde ao governador lhe fazendo outra pergunta que ia diretamente ao fundo do problema de Pilatos:
- Você quer saber disso por você mesmo ou têm outras pessoas por trás desse interesse?
Pilatos tenta sair por uma tangente: Por acaso, eu sou judeu?
No evangelho de João, Jesus tinha sido chamado por Natanael e pelos discípulos de “rei de Israel”. Mas, Pilatos pergunta se ele é rei dos judeus, isso é dos israelitas que aceitam ver a sua terra transformada em mera província romana (a Judeia).
E Jesus dá uma resposta que suscitou muitos problemas na história. Ele disse: Minha realeza ou minha forma de trazer o reino de Deus para o mundo nada tem a ver com o estilo ou a forma de vocês em suas relações políticas. O reino de Deus é de outra ordem ou vem de outra forma.
Infelizmente muitas vezes na história, as pessoas leram esse texto como se Jesus tivesse dito que a realeza de Jesus não se dá neste mundo e sim no céu, depois da morte. É de natureza puramente espiritual e íntima e não tem nenhuma repercussão social e política. Ao interpretarem assim essa palavra do evangelho, muitos cristãos se justificam por serem indiferentes ao que se passa no mundo social sob o pretexto de que o reino de Deus não é desse mundo. O contraditório é que, ao mesmo tempo que dizem que o reino de Deus não é desse mundo, fazem festas externas e sociais de Cristo rei. No passado, essa festa foi associada ao “direito” do papa ser rei no Estado do Vaticano e garantir o poder do Cristianismo ligado aos poderes do mundo.
Deus queira que esteja próximo o dia em que compreendamos a preocupação de Dom Helder quando, há mais de 55 anos, escrevia: “Jesus me compreende quando digo que não gosto da festa de hoje, nem acho que ele queria ser chamado de rei” (53ª circular – 22/ 10/ 1964). Dois exegetas belgas que comentaram os evangelhos, afirmaram: “Jesus nunca chamaria a si mesmo de rei”[1] (Cf. T. Maertens e J. Frisque, Guia da Assembleia Cristã 3, Vozes, 1970, p.47).
Como a Igreja quer se situar no mundo atual e olhar o mundo a partir dos pobres e dos pequeninos, como nos convida o papa Francisco se faz questão de manter essa linguagem de rei, rainha e reino que hoje não quer dizer nada e é associado à sociedade imperial?
No evangelho de João, fica claro que quem fala de reino e realeza de Jesus são seus inimigos. São os sacerdotes que o denunciaram e prenderam. É Pilatos que escreveu um letreiro e o fixou no alto da cruz com as palavras “eu sou o rei dos judeus” (Jo 19, 19).
A forma como esse reinado ou realeza que se revela na cruz é a partilha. É a primeira coisa que os soldados fazem: repartir entre eles a roupa de Jesus e tirar sorte para ver quem ficaria com a túnica (19, 23- 27). O reinado divino aponta para uma pessoa pobre e oprimida, levantada ao alto, na cruz, como sinal de vida e centro de atração (Jo 12, 32). Por isso, finalmente, Jesus pode responder a Pilatos: “Sou rei. Para isso nasci e para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade e toda pessoa que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18, 33).
Ao afirmar sou rei, Jesus está afirmando que o projeto divino é a realeza do pobre e do povo oprimido. Jesus está falando da verdade do reino de Deus. Diz que dará a sua vida para testemunhar que Deus não é caloteiro e que suas promessas se cumprem e se cumprem aqui e agora.
Essa é a nossa vocação. É a nossa missão e tarefa. Essa é a espiritualidade libertadora: transformar o mundo para testemunhar que Deus é verdadeiro e suas promessas de um mundo novo se realizam.
Em uma festa de Cristo-rei em 1971, Dom Helder Camara escreveu um poema com o título de “Cada vez menos”. E o poema diz assim:
“Te imagino Rei,
a na?o ser com manto de estopa,
coroa de espinhos e cetro de zombaria...
Vejo-Te Opera?rio, Astronauta, Escafandrista,
Enfermeiro... mas, acima de tudo
– temo que na?o me entendam,
como tenho certeza de teu entendimento total –
Vejo-Te Palhac?o,
espantando a tristeza, acendendo alegria,
ajudando a salvar a Crianc?a
que na?o deve morrer em no?s... Recife, 20/21.11.1971 (324ª Circular).
[1] - Cf. Thierry Maertens e Jean Frisque, Guia da Assembleia Cristã 3, Vozes, 1970, p.47.
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