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01/12/2021 Luis Miguel Modino Edição 3943 Dom Erwin Kräutler: A COP26, uma junta médica debatendo o futuro do planeta que está na UTI Primeira parte da Entrevista com Dom Erwin Kräutler
F/ Arquidiocese de Manaus
"Sinceramente, já não acredito mais que essa meta possa ser alcançada e, pior – mesmo não sendo cientista climático –, a partir da região do Xingu, onde vivo há 56 anos, me dou conta de que já ultrapassamos esse patamar..."

Palavras proféticas, que nos levam a assumir a necessidade do cuidado da casa comum. Assim podemos considerar o que Dom Erwin Kräutler nos diz nesta entrevista, analisando os resultados da COP26 e a realidade do planeta e da Amazônia. O bispo emérito do Xingú e presidente da REPAM-Brasil não duvida em afirmar que nosso planeta está na UTI.

Sua fala, sustentada em 56 anos de missão na Amazônia, também tem base científica, recolhendo elementos importantes do Magistério dos últimos Papas. Mais uma vez, que a sociedade e a Igreja católica escutem e respeitem os povos indígenas se torna decisivo para a sobrevivência de um planeta que está entubado.

 Que balanço o senhor faz da COP26? Se sente satisfeito com os acordos alcançados ou esperava mais?

Quem de nós não esperava muito mais!Mesmo assim, desde o início da COP26, fiquei bastante cético e perguntei-me, será que os verdadeiros responsáveis pela mudança climática vão adotar iniciativas convincentes para cortar as emissões de gases de efeito estufae manter o aquecimento em torno de 1,5° Célsius?

Sinceramente, já não acredito mais que essa meta possa ser alcançada e, pior –  mesmo não sendo cientista climático –, a partir da região do Xingu, onde vivo há 56 anos, me dou conta de que já ultrapassamos esse patamar. Quando comparo a época dos anos 60 do século passado com o clima de hoje, só posso gritar afirmando que o clima mudou. Naquela época ninguém conhecia o ar-condicionado. Hoje hospitais, escolas, hotéis, escritórios e igrejas não dispensam mais as centrais de ar. Muitas famílias com um pouco mais recursos optam por esse benefício para passarem um dia mais agradável ou uma noite bem dormida para acordarem descansadas.

Na mesma medida em que, a partir da construção da Rodovia Transamazônica nos anos 70 do século passado, o desmatamento cresceu no maior município do Brasil, Altamira, aumentou significativamente o calor na cidade e nos povoados.

E já que estamos vivendo na era do Coronavírus e recebemos tantas vezes notícias sobre pessoas queridas na UTI, lutando para sobreviver, e quantas vezes as notícias finais se restringem a um seco boletim médico que apenas constata que sucumbiram à agressão do cruel agente infeccioso, comparo a COP26 como uma junta médica debatendo o futuro do nosso planeta que está na UTI.

Cientistas, quais médicos especialistas, estão se reunindo para debater os próximos passos para garantir a sobrevivência do planeta. E o parecer final dessa“junta médica” é avassalador. Porém, os responsáveis por toda essa desgraça, depois de dias de debate,dão recomendações paliativas e se despedem. O paciente continua, de bruços na UTI, entubado. Não consegue mais oxigenar o sangue.

Medidas que deveriam ser tomadas imediatamente para salvar o planeta são receitadas para décadas futuras! Soube ontem que minha sobrinha está grávida. Como será o mundo para esse novo ser humano, ainda agasalhado no seio materno, quando chegar à idade adulta?

 

O Papa Francisco pode ser considerado como um dos grandes impulsores na defesa no cuidado da Casa Comum. Podemos dizer que os conselhos que ele está dando tem força política? Até que ponto suas palavras influenciam a tomada de decisões?

Lembro-me com carinho do dia 4 de abril de 2014 em que estive com o Papa Francisco e ele me revelou que estava escrevendo uma encíclica sobre a Ecologia e logo acrescentou: “pero una ecologia humana”. Fez questão de dar uma especial ênfase a este detalhe: “Não trataremos de ecologia de modo apenas genérico. Está na hora de falarmos em uma ecologia ‘humana’”. Aproveitei a oportunidade para insistir que na prometida encíclica não poderia faltar uma ampla referência à Amazônia e aos Povos Indígenas. E o Papa acolheu minha solicitação nos artigos 37/38 e 145/146. “Laudato sì, mi Signore”!

Quem cunhou a expressão “ecologia humana” foi o Papa Bento XVI. Em sua Encíclica “Caritas in Veritate” (29 de junho de 2009), insiste: “quando a ‘ecologia humana’ e? respeitada dentro da sociedade, também a ecologia ambiental e? favorecida” (n. 51). Já o Papa João Paulo II acentuou na sua encíclica “Sollicitudo Rei Socialis” (30 de dezembro de 1987) a nossa responsabilidade em relação ao meio ambiente:“Usa?-los (os recursos naturais) como se fossem inesgotáveis, com domínio absoluto, põe seriamente em perigo sua disponibilidade não só? para a geração presente, mas, sobretudo, para as gerações futuras” (n. 34).

Na encíclica “Laudato Sì” o Papa Francisco teve a intenção de ultrapassar qualquer fronteira confessional, política, racial e ideológica e dirigir-se à toda a humanidade em todos os continentes. “Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta“ escreveu o Papa na introdução: ”pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum“ (LS 3). Ninguém pode negar que a encíclica teve forte influência no Acordo de Paris aprovado em 12 de dezembro de 2015, como fruto da COP21.

E desta vez, no contexto da COP26, o Papa Francisco chegou até a cogitar ir a Glasgow. Por que esse plano não se concretizou? Não me convence a alegação que a condição pós-operatória impedisse a viagem do Papa a Glasgow. Pouco depois da cirurgia que sofreu, já foi a Hungria e Eslováquia. Desconfio que questões de operacionalizar a visita do Papa como Chefe de Estado e Sumo Pontífice da Igreja Católica foram a causa de cancelar sua viagem a Escócia. Certamente a presença do Papa teria ofuscado a de todos os outros chefes de estado. Pena, que não foi! Digo isso, exatamente por causa do alerta que fez sobre a COP26: “O tempo está se esgotando; esta ocasião não deve ser desperdiçada”.

Mas, pelos resultados vemos que a COP26 não levou muito a sério o alerta papal.Comparando com a COP21 de Paris, em 2015, parece-me que se continua estabelecendo prazo atrás de prazo, sempre de novo adiando para décadas distantes o cumprimento de acordos que deveriam ser observados imediatamente. Mais COPs com bilionários gastos terão que acontecer e as negociações irão continuar. “Hasta quando!”. “O tempo está esgotando!” Assim é que falou o nosso papa.

O argumento de que o tempo já esgotou é realista! Já nos encontramos na fase do Plano B: como mitigar as consequências? Quem sabe, o Papa Francisco já esteja pensando numa nova encíclica para declarar-se solidário com as famílias e os povos vítimas dos infortúnios causados pelas mudanças climáticas e convocando mais uma vez as nações ricas deste mundo a socorrer aos povos atormentados e esfomeados.

Em vez de emprestaro estribilho “Laudato Sì” do “Cântico das Criaturas” de São Francisco de Assis, para uma nova encíclica terá que escolher talvez uma estrofe da sequência “Dies Irae” que é daquela mesma época: “Lacrimosa Dies Illa, qua resurget ex favilla iudicandos homo réus!” Na fria noite em Viena de 5 de dezembro de 1791, Mozart, já agonizando no leito de sua morte, compôs ainda a sua última e lancinante melodia: um crescendo sugestivo torna a estrofe “Cheio de lágrimas naquele dia em que das cinzas subirá o homem culpado” cada vez mais assombrosa e estupenda, desílaba em sílaba sempre mais arrepiante, até finalmente culminar na explosão condenatória do “homo reus”– “o homem culpado”!

Continua em um próximo artigo: Como a sociedade e a Igreja brasileira deveriam se posicionar no cuidado com a Casa Comum?

 

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