Formação Bíblia
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10/06/2020 Carlos Mesters e Francisco Orofino Edição 3925 Comparando a leitura popular com outras leituras da Bíblia
F/ CEB Continental
"A Bíblia se parece com aquelas roupas típicas, que não mudam ao longo dos séculos, mas que em cada época e lugar são usadas por pessoas diferentes."

Carlos Mesters e Francisco Orofino

 Comparando o modo de o povo usar a Bíblia com as outras maneiras de se ler a Bíblia, a gente percebe melhor os valores e os limites da leitura popular e os meios como incentivá-la e fazê-la crescer. 

  1. Com a leitura da Bíblia que transparece na própria Bíblia

O texto da Bíblia não caiu pronto do céu, mas nasceu aos poucos, ao longo dos séculos, como fruto da interpretação dos fatos da história, iluminados pela fé em Deus. Cresceu como a cera ao redor do pavio da fé no Deus “presente no meio de nós”. O ambiente, o lugar desta leitura e releitura era a celebração semanal, a liturgia: os santuários, as romarias, o Templo. De fato, os textos mais antigos da Bíblia são cânticos litúrgicos: o cântico de Miriam (Ex 15,20-21), de Débora (Jz 5,2-31), de Ana (1Sm 2,1-10) e a antiga profissão de fé, conservada no livro do Deuteronômio (Dt 26,5-9).

Se o texto bíblico nasceu e cresceu em ambiente de celebração, então esta dimensão celebrativa deve estar presente também na sua leitura e interpretação. Neste ponto, a leitura do povo dá uma lição para todos nós, pois o povo sabe envolver a leitura da Bíblia com um ambiente fraterno e celebrativo. Lendo juntos a Bíblia, eles chegam perto da fonte de onde nasceu a própria Bíblia. Bebem da mesma água! 

  1. Com as Visões Globais da história do povo de Deus

No AT e NT o que mais tem é Visão Global da história do Povo de Deus. Eis algumas, atribuídas às seguintes pessoas: Moisés (Num 20,14-17; Dt 6, 20-25; 26,4-10), Josué (Js 24,2-15), Jefté (Jz 11,12-28), Neemias (9,5-37), Aquior (Jdt 5,5-21), Matatias (1Mac 2,49-68), Salmos (Sl 105, 106, 107), Estevão (At 7,2-53), Paulo (At 13,15-41), etc.

Todas estas visões globais evocam a mesma história, os mesmos fatos, mas cada uma o faz a seu modo. Nenhuma delas é igual à outra. É que os pés estavam em outra situação, o objetivo que os levava a reler o passado era diferente, e o público alvo era outro.

Isto significa que, na Bíblia, a visão global da história do povo não é independente da situação das pessoas que hoje a observam e analisam. A Visão Global da história parece mais um círculo que nasce a partir das preocupações das pessoas que hoje leem a Bíblia. A partir destas suas preocupações, elas passam em revista os fatos da história do passado, selecionam aqueles fatos com que possam iluminar os problemas que elas mesmas estão enfrentando. A Visão Global da história é tão global que engloba até a própria pessoa que a elabora. O passado faz parte do presente. É o chão debaixo dos pés que nos sustenta.

Hoje, o povo faz a mesma coisa. Todos nós fazemos a mesma coisa: selecionamos os fatos da história da Bíblia para que com eles possamos iluminar a situação atual do Brasil. Na época da ditadura, dava-se mais importância ao Êxodo, à libertação do Egito. Em época de acomodação e de desânimo, se dá maior atenção à prática dos profetas na época do cativeiro. A leitura que se faz do passado depende do momento vivido no presente. 

  1. Com a Literatura Sapiencial que soube valorizar o humano

Nos livros sapienciais, a Bíblia conserva a expressão da sabedoria popular: provérbios, cânticos, reflexões, críticas, reflexos da vida de cada dia. Conserva as coisas mais elementares da vida de cada dia que, até hoje, todos nós fazemos e que a mãe e a avó ensinavam, não só a Timóteo (2Tm 1,5), mas também a todos nós. A Bíblia conservou até textos de pessoas que não eram israelitas. Conservou as “palavras de Agur, filho de Jaces, de Massa” (Eclo 30,1-14), que não era israelita. O mesmo vale para o livro de Jó: “Era uma vez um homem chamado Jó, que vivia no país de Hus” (Jó 1,1). A terra de Hus não era israel. Jó é apresentado como um estrangeiro. E todas as suas palavras, conservadas na Bíblia, são agora palavra de Deus para nós!

Fica a pergunta muito séria: Como valorizar a sabedoria popular de hoje como Palavra de Deus? Uma resposta a esta pergunta aparece nos círculos bíblicos, onde o povo, com a ajuda da Bíblia, descobre como Deus fala hoje, através dos fatos da vida. Dizia Tomás, um agricultor lá do Ceará: “Fui notando que se a gente vai deixando a Palavra de Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim ela vai tomando conta da gente e a gente não consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é Palavra dele e palavra da gente. A Bíblia fez isso em mim”. 

  1. Com o método de Jesus no caminho de Emaús.

Andando com os dois discípulos até Emaús, Jesus ensina como ler e interpretar a Bíblia. O primeiro passo: aproximar-se das pessoas, escutar a realidade, ser capaz de fazer perguntas que ajudem as pessoas a olhar a realidade com um olhar mais crítico (Lc 24,13-24). O segundo passo: com a ajuda da Bíblia, iluminar a situação e transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança (Lc 24,25-27). O terceiro passo: criar um ambiente orante de fé, de partilha e de fraternidade, onde possa atuar o Espírito Santo que abre os olhos e faz descobrir a presença de Jesus (Lc 24,28-32). O resultado: os dois discípulos, eles mesmos ressuscitam, experimentam a presença viva de Jesus e do seu Espírito. Eles vencem o medo, voltam para Jerusalém, enfrentam as ameaças aos seguidores de Jesus (Lc 24,33-35).

O que importa notar é que, neste encontro com Jesus, a Bíblia, ela sozinha, não abriu os olhos dos discípulos. Ela fez arder o coração (Lc 24,32). O que abriu os olhos e fez perceber a presença de Jesus foram os gestos comunitários: o convite de hospitalidade, o sentar juntos à mesa, a reza em comum e a partilha. Foi o contexto do Espírito.

Nos círculos Bíblicos o povo segue os mesmos três passos de Jesus e chega ao mesmo resultado: 1º passo: sempre discute a realidade; 2º passo: sempre busca uma luz na Bíblia; 3º passo: sempre partilha, reza, canta e busca transformar a palavra meditada em ação concreta. O resultado aparece à vista de todos nos encontros intereclesiais das comunidades. 

  1. Com os primeiros cristãos que mantinham firme a Ligação entre AT e NT

Entre os primeiros cristãos havia várias tendências. Uns queriam só o AT e interpretavam o NT a partir do AT (cf. At 15,1). No Concílio de Jerusalém, Paulo, Barnabé e Pedro junto com Tiago impediram este retrocesso (At 15,6-29). Outros queriam só a experiência do Espírito. Eles achavam que, depois de terem recebido o Espírito de Jesus no dia de Pentecostes, já não precisavam mais da história e das palavras de Jesus de Nazaré. Eles chegavam até a dizer: “Anátema Jesus!” (Jesus seja maldito) (1Cor, 12,1-3). Mas os cristãos não permitiram que se quebrasse a unidade entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, entre a história do povo hebreu e a prática de Jesus de Nazaré. Eles mantiveram a unidade. Por isso, até hoje, temos na Bíblia o Antigo e o Novo Testamento. Graças a Deus!

A ligação entre AT e NT é como a ligação entre fé e vida. Hoje o que mais dificulta é a separação que, no passado, cresceu entre fé e vida. Para muita gente, a vida é uma coisa, a fé é outra. Uma não tem nada a ver com a outra. Para religar estas duas realidades não basta a reflexão teórica sobre os textos da Bíblia. Algo mais profundo está em jogo. Todos nós temos o nosso Antigo Testamento. É a nossa história, tanto pessoal como nacional. Assim como o AT do povo hebreu, também o nosso AT, a nossa história, está orientada por Deus para desabrochar em Jesus. Na interpretação dos textos da Bíblia o que importa é ir descobrindo e revelando, aos poucos, esta dimensão da nossa vida, da nossa história.

A leitura popular consegue comunicar esta ligação entre Bíblia e Vida. Ao fazer leitura da Bíblia nas suas reuniões, o povo, por assim dizer, está realizando a passagem que todos devemos fazer. Está passando do nosso Antigo Testamento para o Novo Testamento, para a vida em Jesus na Comunidade. 

  1. Com o método dos Santos Padres na interpretação da Bíblia

A maneira como no passado os Padres da Igreja faziam exegese é diferente da nossa exegese do século XX e XXI. Só temos em comum o texto bíblico e a vontade de descobrir lá dentro o que Deus nos quer dizer hoje. Quando Orígenes, um dos maiores intérpretes dos primeiros séculos, explica a travessia do Jordão e a tomada de Jericó, a gente tem a impressão de que o texto bíblico não passava de uma oportunidade para ele fazer reflexões bonitas e verdadeiras sobre a vida, sobre a Igreja, sobre a presença de Deus na vida, sobre a moral e tantos outros assuntos da vida. No comentário que fez dos salmos, Santo Agostinho, já nas primeiras palavras do salmo começa a interpretar por associação de ideias que, aparentemente, não tem nada a ver com o texto do salmo.

Quando hoje o povo se reúne nos círculos bíblicos, ele tem um método semelhante a este método dos antigos Padres da Igreja. Interpreta o texto por associação de ideias ligadas à realidade da sua vida de hoje e não a partir do contexto histórico e literário da época da Bíblia, nem a partir das informações exegéticas. De certo modo, a visão com que o povo lê a Bíblia é uma visão antiga que hoje renasce e que faz o livro ficar novo e atual. E o resultado está aí. Funciona!

Aqui vale a pena lembrar uma afirmação de São Clemente de Alexandria (150-215). Ele dizia: “Deus salvou os judeus judaicamente; salva os gregos, gregamente; salva os bárbaros, barbaramente”. Observando a leitura que o povo hoje faz da Bíblia nas suas celebrações e reuniões, podemos dizer: “E salva os brasileiros, brasileiramente”. Como o povo hebreu, nós também temos o nosso Antigo Testamento: é a nossa história, nossa “letra”. Como o AT do povo hebreu, também o nosso AT, a nossa história, está orientada pelo “espírito” para desembocar na vida plena revelada por Jesus. Por isso, o que importa na interpretação da Bíblia é ir descobrindo esta orientação profunda da nossa vida e da nossa história, para desabrochar em Jesus e na vida ressuscitada da Comunidade. Hoje, o povo, sem nunca ter ouvido falar de São Clemente de Alexandria, mostra como Deus está salvando os brasileiros brasileiramente. E com os mesmos critérios tenta ler e interpretar os fatos da sua vida. 

  1. Com a leitura feita pelo Magistério da Igreja no documento Dei Verbum

No documento conciliar Dei Verbum, os bispos fizeram suas as palavras da 1ª Carta de João: “Aquilo que vimos e ouvimos nós agora anunciamos a vocês!” (1Jo 1,2.3). Nesta frase, eles se referem ao que eles, os bispos, puderam “ver e ouvir” naqueles dias do Concílio Vaticano II. O “nós” que, no texto original, representava João, agora, no documento do Concílio, são os bispos. Os destinatários que, para João, eram os membros daquela pequena comunidade da Ásia Menor perto de Éfeso (na atual Turquia), agora, no texto dos bispos, são os cristãos do século XX do mundo inteiro. Os bispos usam as mesmas palavras, as mesmas letras, usadas por João, mas, na boca dos bispos, estas palavras se tornam veículo de uma experiência bem diferente. Mudou tudo: os destinatários, o remetente, o conteúdo, o lugar e a data. A única coisa que não mudou é a letra da Bíblia, o envelope, a embalagem.

Todos nós usamos a Bíblia assim: Jesus, Pedro, Paulo, Lutero, Francisco, Teresinha, os bispos, os pastores, os papas, as comunidades, os religiosos, as religiosas, os católicos, os protestantes, os crentes, você, eu, todos, todas! De fato, muitos de nós, quando temos uma experiência de Deus e da vida, tentamos expressá-la usando as palavras da Bíblia. Fazemos até questão de buscar palavras na Bíblia para, por meio delas, revestir e expressar o que se passa no coração e na vida da gente. Nesta maneira de usar a Bíblia transparece a incrível atualidade deste livro antigo.

A Bíblia se parece com aquelas roupas típicas, que não mudam ao longo dos séculos, mas que em cada época e lugar são usadas por pessoas diferentes. Você vê alguém andando na rua e, de acordo com o tipo de roupa, você reconhece a pessoa e a função que ela ocupa, o trabalho que realiza, ou a festa que celebra. Na rua reconhecemos pela roupa a noiva, o padre, a freira, o soldado, o guarda suíça, a polícia, o rabino. Da mesma maneira, vestir a roupa da Bíblia traz um reconhecimento. Tudo é diferente: remetente, destinatário, data, lugar e conteúdo. Só a roupa é igual. É pela roupa que nós reconhecemos a pessoa, e é pela roupa que a pessoa se identifica e se apresenta aos outros.

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