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01/12/2021 Luis Miguel Modino Edição 3943 Como a sociedade e a Igreja brasileira deveriam se posicionar no cuidado com a Casa Comum? Continuação da Entrevista com Dom Erwin Kräutler feita por Luis Miguel Modino – Regional Norte 1
F/ REPAM
"A Amazônia, mesmo que abranja em superfície a metade do Brasil, sempre foi considerada “colônia” ou “província”: seringueira, madeireira, mineradora, energética, última fronteira agrícola, enfim, uma colônia a ser explorada até a derradeira gota de sangue..."

O Brasil é um dos países onde a falta de cuidado do meio ambiente tem provocado grande preocupação em muita gente. Como a sociedade e a Igreja brasileira deveriam se posicionar para que o poder público assuma esse cuidado como necessidade urgente?

O slogan “a Amazônia é nossa” é muito perigoso. De antemão se recusa qualquer sugestão vinda de fora, taxando-a de intromissão indébita em assuntos internos brasileiros. Hoje, o mundo inteiro está sabendo o que acontece na Amazônia. Cientistas alertam que a Amazônia tem uma função reguladora para o clima planetário. E o ex-presidente Lula certamente vai admitir que o discurso que em Altamira fez no dia 22 de junho de 2010, no contexto da construção da Hidrelétrica Belo Monte, nem no seu governo, nem nos governos subsequentes teve consequências reais:

"Nós precisamos mostrar ao mundo que ninguém mais do que nós queremos cuidar da nossa floresta. Mas ela é nossa. E que gringo nenhum meta o nariz onde não é chamado, que nós saberemos cuidar da nossa floresta e saberemos cuidar do nosso desenvolvimento". Governos entram e passam, novos tomam posse, e a situação não muda, antes piora!

A Amazônia não é apenas brasileira. Mesmo que o Brasil abranja a maior parte dessa macrorregião, são nove países que compõem a Amazônia. Por isso as medidas a serem tomadas precisam ser multilaterais, pois devem salvar a Amazônia como um todo e não em porções homeopáticas. Não é atentar contra a soberania brasileira ou de qualquer outro país da Amazônia, quando se defende a tese de que Amazônia é patrimônio da humanidade. Esse fato simplesmente acentua a imensa responsabilidade de cada país de cuidar da Amazônia.Sua função reguladora do clima planetário não se exaure no litoral ou nas fronteiras terrestres.

A grande falha de todos os governos, federal, estaduais e municipais foi sempre e continua sendo a quase total ausência de vontade política de levar adiante um programa sério e sólido de defesa da Amazônia. Os governos deixam-se impressionar com promessas vultosas por parte de megaprojetos, de melhoria nas infraestruturas das cidades, empregos e muito dinheiro. Promessas enganosas! Prova disso é a hidrelétrica Belo Monte, na Grande Volta do Xingu, que deixou um rastro enorme de degradação, devastação, frustrações e desencantos.

E já assombra um outro projeto a Grande Volta do Xingu, a uns 40 km de distância da Hidrelétrica. O novo projeto provém da Belo Sun Mining, uma firma canadense, que num prazo de duas décadas pretende investir bilhões de reais e acena com milhões de impostos e outros milhões em forma de royalties para a extração de 74 toneladas de ouro na Volta Grande do Xingu. Para isso terá que retirar milhões e milhões de toneladas de rocha. O que mais espanta nesse projeto é o armazenamento de rejeitos, há poucos metros da margem do Xingu. As promessas são espetaculares. Tudo estará sob controle. Não há possibilidade de algum incidente!

A conversa é exatamente a mesma que se ouviu antes do monumental acidente em Mariana e Brumadinho que causou a morte de centenas de pessoas!Sonhando com muito dinheiro, a grande maioria de políticos acredita piamente que todo o empreendimento estará seguro. Passadas duas décadas, a firma voltará para o seu Canadá. O dinheiro acabou. O ouro se foi! E o Brasil ficará com a bomba-relógio do tamanho de dois “Pão de Açúcar” de lixo de mineração a atemorizar o meio ambiente da Volta Grande e de toda região do Baixo Xingu.

Outra falha é a insuficiente sensibilização em favor da preservação da Amazônia em quase todos os segmentos da sociedade. A crença de que a Amazônia é inexaurível e continua eternamente superabundante parece pertencer ao DNA de grandes e pequenos. É de urgência urgentíssima implementar uma conscientização e ética ambientais, desde o ensino fundamental até o nível universitário. 

Na Encíclica Laudato Sì, nosso Papa Francisco ressalta: “O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. (...) Podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si” (LS 105).

O senhor tem alguma esperança em que o governo brasileiro possa tomar alguma medida para mudar a realidade no que faz referência ao cuidado do meio ambiente?

Não tenho nenhuma esperança de que o Governo Bolsonaro ainda se empenhe em transmutar sua visão a respeito da Amazônia. Se bem que a frase “Deixar a boiada passar” tenha sido pronunciada por um ex-ministro do Meio Ambiente, o conteúdo dela revela o pensamento de Bolsonaro. Aliás, nenhum presidente que eu conheci nas minhas mais de cinco décadas vivendo na Amazônia, amou a Amazônia ou entendeu qual é realmente a vocação da Amazônia.

Amazônia, mesmo que abranja em superfície a metade do Brasil, sempre foi considerada “colônia” ou “província”: seringueira, madeireira, mineradora, energética, última fronteira agrícola, enfim, uma colônia a ser explorada até a derradeira gota de sangue, sem cuidar das feridas causadas pelos maus-tratos e curar as chagas abertas, cada vez mais extensas e profundas!

Os povos indígenas, que o senhor tem acompanhado ao longo de sua vida missionária, tiveram um papel em destaque na COP26. Muitas pessoas reconhecem a importância de seus aportes, mas o que falta para que suas propostas sejam levadas a sério? Por que o empenho do governo brasileiro em persegui-los e acabar com seus direitos e territórios?

Assisti com muita satisfação a vários depoimentos de indígenas em Glasgow e aplaudi diante da telinha de meu computador. Apresentaram-se nas suas tradicionais cores faciais e com belos cocares. Seus aportes foram contundentes e emocionantes ao mesmo tempo. Mas, senti no fundo do meu coração, uma dor angustiante. Sempre de novo me perguntei, qual é que seria realmente a reação dos destinatários e destinatárias da mensagem indígena.

Confesso que tive a mesma sensação durante do Sínodo para a Amazônia em Roma, no mês de outubro de 2019. Indígenas, mulheres e homens dos vários países que compõem a Amazônia, tinham sido convidados para participar de um histórico evento da nossa Igreja. E não se fizeram de rogados. Aproveitaram os minutos de discurso que lhes foram concedidos na aula sinodal para dar o seu recado. Viram o Papa muito atencioso, cardeais e bispos, em sua maioria,ouvindo com empatia. Ganharam aplausos.

Nas idas e vindas à aula sinodal tornaram-se alvos preferidos para fotografias. Já no dia da abertura cercaram o Papa na procissão que partiu de São Pedro e “atrapalharam” o préstito solene programado dentro dos moldes da costumeira disciplina canônica. A famosa precedência eclesiástica,de acordo com o cargo que um bispo ou cardeal ocupa, simplesmente caiu por terra. Os indígenas tomaram conta da procissão.

O que o Sínodo para a Amazônia tem a ver com a COP26? Os indígenas ficaram em evidência em ambos os eventos! Tiveram chance de se manifestar e o fizeram com muita propriedade. Mas, – aí que está o detalhe –,  a maioria das e dos participantes consideraram estes homens e mulheres de traços típicos apenas como peças folclóricas para dar ao evento uma dimensão de presença “de todas as nações, tribos, raças e línguas” (Ap 7,9). Nem de longe os indígenas foram realmente aceitos como “iguais” em dignidade e direitos e respeitados nas suas legítimas exigências e reivindicações.

Na nossa Igreja não é muito diferente!Preferimos falar hoje numa perspectiva de “inculturalidade” (cf. OLIVEIRA, Márcia Maria de. Quando a diferença transforma-se numa ponte. Manaus: Amazonas Atual, 2020), em vez de “inculturação” para substituir um termo que parece insinuar a superioridade de alguma cultura em relação à outra que deve ser “inculturada”. Já o Documento de Santo Domingo sucumbiu à essa tentação quando aconselhou: “Promover uma inculturação da liturgia, acolhendo com apreço seus símbolos e expressões religiosas compatíveis com o claro sentido da fé, mantendo o valor dos símbolos universais e em harmonia com a disciplina geral da Igreja“ (DSC, 248).

Quem é que vai determinar o que é compatível ou não, o que está em harmonia ou não, com o claro sentido da fé e a disciplina geral da Igreja? Só convivendo com um povo é possível conhecer o sentido profundo de suas expressões culturais, falando seu idioma e adentrando o universo de seus simbolismos arcaicos e religiosos. Isso não se pode ser feito a uma distância de 10 mil quilômetros, no aconchego de um escritório climatizado.

Há tentativas muito valiosas de dar passos para uma interculturalidade litúrgica, aceitando expressões culturais dos povos indígenas e quilombolas. Quem não lembra o grande promotor dessas tentativas de inculturalidade, o saudoso Dom José Maria Pires! O que falta é coragem, é audáciapara dar passos mais significativos.

Hoje, na busca da “interculturalidade”, a realidade em nossa Igreja é bastante intrigante. De uns tempos para cá surgiram, cada vez mais, pessoas e facções tremendamente racistas,a insultar bispos e padres que aceitam expressões, cânticos, batuques indígenas ou quilombolas numa celebração litúrgica. Não será fácil concretizar as decisões do Sínodo para a Amazônia e os “sonhos” da Exortação Apostólica do Papa Francisco; “Querida Amazônia”. A oposição é virulenta!

Quem é que realmente ama a Amazônia como terra de seus ancestrais de tempos imemoriais? Lembro-me da histórica marcha dos povos indígenas em 2000 no contexto dos 500 anos em Porto Seguro. Os indígenas da Amazônia carregaram faixas com dizeres: “Reduzidos sim, vencidos nunca!”. De fato, desde há milhares de anos, a Amazônia é seu lar, sua pátria, o chão de seus mitos e ritos, a ambiente próprio para suas danças e crenças, a terra em que sepultaram seus ancestrais.

Hoje, o que está sendo rejeitado por Bolsonaro e o agronegócio, é a Constituição Brasileira de 1988 que, ao sustentar a existência de terras indígenas, defende a existência de terras fora do mercado capitalista. A palavra de ordem do agronegócio é: “Nenhuma terra fora do mercado!” Contra nossa convicção: “Toda a terra a favor da Vida e da Paz!”. São dois projetos antagônicos: um a favor da Terra para a Vida, o outro a favor da Terra para o Negócio e a exploração e usurpação desavergonhadas.

Se ainda não teve acesso, leia a primeira parte desta entrevista: COP26, uma junta médica debatendo o futuro do planeta que está na UTI

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