Formação Bíblia
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05/03/2020 Marcelo Barros   Edição Amar em uma sociedade contrária ao amor  
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"- Vou matar uma pessoa. Quero enfiar uma faca na barriga dele e torcer a faca dentro dele para fazê-lo sofrer o mais possível. Vou fazer isso e de forma que ninguém vai saber que fui eu..."

 

Ontem vivi uma experiência singular. N é um lavrador que há 15 anos participou de um encontro comigo sobre espiritualidade. Agora, casado, com dois filhos, me procurou para confidenciar:

- Vou matar uma pessoa. Quero enfiar uma faca na barriga dele e torcer a faca dentro dele para fazê-lo sofrer o mais possível. Vou fazer isso e de forma que ninguém vai saber que fui eu...

Tentei partir do mais básico:

- E você mesmo? Não vai saber que fez isso com outro ser humano? Vai ficar tranquilo e dormir à noite? Vai olhar os seus filhos e sua esposa em paz?

E ele me respondeu: - Vou.

Eu: - e os filhos e a esposa dele, você vai poder olhar também com o mesmo olhar de paz?

Ele baixou os olhos e respondeu:

- Mas, ele tirou a minha honra e agora só com sangue posso recuperar a minha honra.

Nem a questão da lei, nem os riscos, nada o demovia da sua decisão. Aí me lembrei de perguntar:

- Esse é o seu principal projeto de vida? Matar um homem?

E ele me respondeu: - Não. Meu projeto maior é mudar o mundo. É a terra pra todos nós e a justiça.

- E você acha que matar alguém entra nesse projeto maior ou vai contra esse projeto?

- Não sei. Não pensei...

- Como você pode ter um projeto que diz que é o projeto maior de sua vida e você decide praticar um fato que vai acarretar muitos problemas para você e para os seus e não pensa no projeto maior? Como é isso?

A partir daí, percebi que semeei no seu coração a percepção de que algo não estava justo. Contei a ele a história dos dois lavradores que conheci em Goiás que foram expulsos da terra por um fazendeiro que queimou a casa de um deles, pôs em risco a vida de toda a família e também ameaçou o outro até força-lo a deixar a terra. Um dia, chovia muito e o rio transbordava. Era uma estrada do interior e em uma curva, os dois lavradores a cavalo viram um carro que acabara de cair no barranco. O rio subia e a água começava a chegar. Dentro de poucos minutos, iria cobrir tudo. Um disse ao outro: Temos de descer enquanto conseguimos. Arriscaram a vida para salvar o coronel que estava dentro do carro. Tiraram de dentro das ferragens o homem ferido e o levaram para o hospital.

Em um campo de concentração nazista, Etty Hillesum, jovem judia de 28 anos que tinha perdido seus pais e esperava o dia de sua morte, escreveu: “Aqui, a condenação pior que pesa sobre nós não é a condenação à morte. É o envenamento pelo ódio contra o inimigo e esse mal os alemães não podem nos fazer. Eles não podem nos obrigar a odiar. Só nós mesmos nos fazemos isso. Eles podem nos tirar tudo, menos a nossa humanidade”.

O evangelho Mateus 5, 38- 48 nos transmite a palavra de Jesus sobre o amor ao inimigo. É contra a inclinação comum que qualquer pessoa humana sente, mas foi revelada pelo Espírito em todas as grandes tradições espirituais da humanidade. O Mahatma Gandhi se apoiou nas tradições hinduístas para fazer a sua ação política da não violência ativa baseada na força da verdade e na resistência. Na África do Sul, o regime do apartheid caiu a partir da luta não violenta. O evangelho radicaliza isso ao pedir algo novo: amor aos inimigos. Não se trata só de não odiar. Trata-se de amar o inimigo. Isso não quer dizer tornar-se seu amigo. Menos ainda é aceitar injustiças. Amar o inimigo é trabalhar contra a injustiça e fazer de tudo para frustrar o projeto do mal, mas de modo a salvaguardar a dignidade de pessoa humana, dele e a minha. Ao lutar contra a opressão eu luto pela libertação, minha, de todos os oprimidos e também do opressor. No entanto, se ao fazer isso, eu não sou movido por amor, eu me rebaixo ao mesmo nível da desumanidade do inimigo e estou  dando algo que ninguém pode tirar de mim: minha humanidade.  Na literatura brasileira, um clássico é o livro Amar, verbo intransitivo de Mario de Andrade. Jesus nos ensinou que o amor é divino. Pelo amor nos tornamos semelhantes a Deus.

Em um sermão sobre o Gênesis, no século IV, São João Crisóstomo explicou: “Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. E assim Deus criou o homem e à mulher e o criou à imagem de Deus”. Por que o texto sagrado diz que Deus tinha querido criar o homem à sua imagem e semelhança e depois quando diz que o criou insiste que foi à sua imagem, mas não fala mais em semelhança? É porque todo ser humano é imagem de Deus. No entanto, existem imagens (hoje nós diríamos fotografias) que se parecem com o original e outras que não parecem. Assim todo ser humano é imagem de Deus, mas semelhança é algo que a gente tem se tornar. É tarefa nossa. E a gente só se torna semelhança de Deus pelo amor. É o amor a nossa semelhança a Deus”. É isso que Jesus quis dizer quando mandou: Sejam perfeitos como o Pai do céu é perfeito.

 

PS: Algumas pessoas me perguntam por que eu, monge, aceito participar da equipe ecumênica de religiosos que assessoram a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira no Rio de Janeiro. Faço isso para testemunhar a Igreja em saída que o papa Francisco propõe. Estou convencido de que ninguém é proprietário de Deus como se fosse uma firma e que como diz Paulo: Se Jesus é anunciado, seja como for e com a motivação que for, só posso ficar feliz e me alegrar (Filipenses 1, 15 e 18)

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