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21/12/2019 Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN* Edição 3918 A Palavra “Deus” pronunciada com sentido Reflexão
F/ Leticia Bucker Lele / Pixabay
"Penso que o nosso maior desafio, hoje, não é a negação de Deus, nem o ateísmo, mas a indiferença e a insensibilidade em relação ao outro."

Falar com Deus, participar de uma religião, celebrar rituais “sagrados”, usar indumentárias religiosas, cumprir alguns preceitos legais, etc. tudo isso são expressões externas da fé. Um modo visível de “mostrar a fé”. Mas se essas expressões religiosas não se traduzem em atitude de amor e compromisso ético para com o outro, tornam-se palavras e gestos vazios, sem vida, sem sentido. O próprio Jesus já alertava os seus discípulos para o perigo de uma fantasia espiritual, ou seja, de uma fé desvinculada da caridade: “nem todo o que me diz: ‘Senhor! Senhor!’entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mt 7, 21).

A fé cristã deve ser mostrada pelas abras da fé. Porque devido à encarnação da Palavra de Deus e da sua opção pelos pobres, excluídos e marginalizados, a fé cristã tem necessariamente um desdobramento ético. É preciso coragem para “tocar a carne sofredora de Cristo no outro”, do contrário, teremos um falso discurso sobre Deus. Como nos alerta a Carta de São Tiago: “Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta” (Tg 2, 26). Noutras palavras, a práxis da vida à fé.

 

Ética e religião

Num contexto de crise de sentido e do anúncio pós-moderno da substituição da ética pela poética, a intriga entre ética e religião torna-se cada vez mais relevante. Não que tenhamos que passar da ética secular à ética teológica, como se a responsabilidade pelo outro fosse uma espécie de trampolim para Deus e se, por outro lado, Deus fosse reduzido à ética como religião.

A intriga entre ética e religião se encontra confirmada na sabedoria bíblica que apresenta um Deus kenótico que se humilha para “estar junto com o contrito e o humilde” (Is 57,15), que se manifesta no mundo por sua aliança com os excluídos. Um Deus que tem “entranhas de misericórdia” (Os 11,8), que se deixa afectar pela dor e sofrimento do estrangeiro, da viúva e do órfão; um Deus que se deixa “alterar” pela nossa humanidade, que se preocupa com o sofrimento de seu povo, vê sua miséria, ouve seu grito por justiça, conhece suas angústias e desce para libertá-lo (cf. Ex 3,7-8). Enfim, um Deus-amor que se expõe para se autocomunicar à humanidade o seu amor. Portanto, não podemos renunciar à ética como responsabilidade pelo outro, principalmente pelos pobres e injustiçados se quisermos permanecer fiéis à fé que professamos.

Trata-se de compreender a religião como lugar do viver-para-o-outro na responsabilidade ética. Isso não significa que Deus seja colocado como fundamento da ética. Pois a palavra “Deus” aparece no regime da ética não porque Deus é fundamento, mas porque, como “ileidade” ou enigma que se passa na responsabilidade, o homem-profeta obedece à voz de Deus, na voz do rosto. Como afirma Levinas, “o ‘rosto’, em sua nudez, é a fragilidade de um ser único exposto à morte, mas ao mesmo tempo é o enunciado de um imperativo que me obriga a não deixá-lo só. Essa obrigação é a primeira palavra de Deus. A teologia começa para mim no rosto do próximo. A divindade de Deus atua no humano. Deus desce no ‘rosto’ do outro.”

 

Tocar as chagas de Cristo na “miséria” do outro

Penso que o nosso maior desafio, hoje, não é a negação de Deus, nem o ateísmo, mas a indiferença e a insensibilidade em relação ao outro. A cultura atual não deixou de acreditar em Deus, ainda sabemos quem é Deus, até elaboramos longos discursos sobre Deus, mas esquecemos quem é o nosso próximo. Quantas vezes “sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (EG, n.270).

Quando falamos de uma Igreja comprometida com a causa dos pobres, dos negros, dos índios, da mulher marginalizada e de tantas outras minorias desrespeitadas em seus direitos e feridas em sua dignidade, muitos nos acusam de comunistas, marxistas, etc. Mas, então Jesus também foi comunista, pois foi Ele o primeiro a se colocar ao lado dos pobres, dos injustiçados (cf. Lc 4, 16-21), convidando-os a experimentar a sua consolação. “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardo, e eu vos darei descanso” (Mt 11,28).

Neste sentido, falar de justiça social, cultivar uma fé profética não é defender ideologias, e sim vivenciar a mística do seguimento a Jesus Cristo, o crucificado-ressuscitado, que se fez solidário com os pobres e sofredores. Como afirma o documento de Puebla (n. 28), “vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, cuja gravidade é maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de mudar.”

Superar, pois, a “globalização da indiferença”, tocar as chagas de Cristo nos pobres e injustiçados, assumir a nossa responsabilidade pelo outro como guardas de nossos irmãos e irmãs (cf. Gn 4, 9), eis a nossa grande missão no mundo. Pois encontrar Deus no serviço gratuito ao outro, apesar de manter a ambiguidade que é própria das obras (um ateu também é capaz de amar gratuitamente e de viver eticamente), revela a essência da espiritualidade cristã que professa um Deus que, na sua transcendência, “passa” e “se passa” pela relação ética sem se deixar tematizar pela consciência. 

 

Mostrar a fé no silêncio das obras

Numa sociedade individualista, que supervaloriza o dinheiro e o consumo, que cada vez mais vai perdendo o senso de responsabilidade fraterna; viver a fé como justiça social, na solidariedade aos “caídos à beira do caminho” (cf. Lc 10, 25-37), torna-se um imperativo inegociável. É preciso mostrar a fé no silêncio das obras. Por que muitas vezes queremos servir a Deus sem, no entanto, abandonar o culto ao dinheiro. Nas palavras de São Basílio: “Possuis muitas riquezas, mas qual sua origem? Preferes desfrutar sozinho delas que socorrer aos necessitados. Isto é claríssimo. Na medida em que aumentam tuas riquezas diminui tua misericórdia. Se amares teu próximo, há muito tempo já te haverias desprendido de tanta riqueza. Mas teu dinheiro está mais colado a ti que os membros de teu próprio corpo e te dói muito mais desprender-se do teu dinheiro que cortar teus membros mais importantes. Os fatos estão aí... Se tivesses partilhado tuas riquezas não seria doloroso afastar-se delas (...). Em que irás empregar tuas riquezas? O diabo se encarrega de dar aos ricos bons pretextos para gastar, de forma que se busca o inútil como necessário, e nada lhes basta para saciar suas necessidades imaginárias.”

Há quem pense que fé e vida, religião e ética são coisas distintas ou mesmo antagônicas e que a religião tem que ver tão somente com o espiritual, com a moral privada e que não se deve envolver com a coisa pública. Surge, pois, um tipo de religião intimista, individualista, sem nenhuma implicação na vida da sociedade. Porém, como nos lembra o Concílio Vaticano II, “a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas atividades” (Gaudium et Spes, n. 34). Noutras palavras, nossa fé nos obriga a viver a justiça e a misericórdia como responsabilidade ética pelo outro.

Neste sentido, faz-se necessário abrir novos horizontes de significação do que vem a ser a religião ou mesmo a fé cristã. Pois se se perde de vista a perspectiva da justiça como promoção do outro, como instrumento da paz, a fim de que o homem possa ser um-para-o-outro, como guardião-de-seu-irmão, como um-responsável-pelo-outro, etc. a fé torna-se vazia de sentido e a palavra Deus se transforma em “ídolo” sem nenhuma eficácia em nossa existência. Pois a mística não é posterior à ética, mas a ética é o lugar mesmo da mística, do discurso sobre Deus. É na ética como responsabilidade pelo outro, que a palavra “Deus” é pronunciada com sentido.

 

* Licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, com especialização em formação para Seminários e Casa de Formação. Mora atualmente na paróquia São Bernardo, Belo Horizonte - MG.

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